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02 janeiro 2024

A DISSIMULADA

 

A DISSIMULADA  

     Fiquei surpreso quando Balbina bateu lá em casa trazendo um bilhete de Márcia. Aquilo foi a melhor sensação que tive em 1996. Márcia foi no tempo de escola, só para justificar a importância do bilhete para mim, a razão para eu assistir aquelas fatídicas aulas de física. Por favor, me desculpem os físicos e quem os admiram, mas não estava interessado em saber nada sobre movimento retilíneo uniforme ou uniformemente variado. O único movimento que me interessava era o rebolado de Márcia. Nada era mais esperado do que o momento dela levantar a mão e pedir ao professor para ir ao banheiro. Cara, os meninos da turma fixavam o olhar nas suas passadas longas e elegantes. Ah, Márcia, linda Márcia! Esse sim era o movimento que fazia eu pensar em outras coisas do mundo. E sem temer a vergonha imaginava por alguns instantes as aventuras censuradas.           

   Bom, voltemos ao convite, basta de viagem, o certo é que não o entendi, nele faltava o motivo, isso já me deixou desconfortável, ansioso. Escrito tinha somente a frase, venha à minha casa hoje às 18:00h, preciso te ver. Um convite desse não era coisa normal acontecer, sem contar a minha forma invisível para ela. Sabe qual a razão para dizer isto? Márcia nunca dirigiu a palavra a mim, parecia que eu não existia.

    Certa vez no caminho da quadra para a sala de aula, fui tentar impressioná-la declamando uma poesia. O recreio tinha encerrado, estávamos retornando às salas. Aí tomei coragem gritei seu nome, Márcia, linda Márcia. Todos ficaram surpresa com a minha atitude. Atrás de mim ouvi a frase, pronto, o circo está armado. Foi Balbina sua amiga inseparável que houvera pronunciado a profecia, de fato foi um circo, o palhaço, no caso eu, não tive um aplauso se quer. Depois da apresentação, os gritos tomaram conta, pronunciando seu nome. Ela esperou cessar o barulho, olhou, mordeu o lábio inferior com muita raiva! Em seguida disse:

___Porque tu não morres logo? Palhaço. Virou as costas, dirigiu-se à sala de aula. Daí por diante os meus dias tornaram-se mais difíceis na escola. Se já colecionava apelidos, após essa infrutífera tentativa de ser poeta alongou mais ainda a lista. Chamavam-me de estranho, como usava óculos, colocaram-me a alcunha de quatro olhos, e segue a lista, suspiro da morte, chiclete de onça, e agora palhaço. Portanto, motivo para recusar o convite tinha de sobra, ainda assim, recusá-lo não era muito educado.

    Como sempre fui precatado, e para não comparecer sozinho, estendi o convite ao nosso amigo também de infância, o Aírton, uma figura meio barroca, seu aspecto bizarro beira a transgressão à beleza em seu estado mais simples. Mas era um bom amigo, encarava com muito bom humor as minhas ácidas brincadeiras. Dito isto, imagine quão generoso era o nosso amigo. Gosto muito do Aírton, e certamente se ouvisse essas palavras que a ele me refiro, as registrariam como elogio, pois o meu querido amigo foi um daqueles garotos que não passaram do ginasial, ficaram pelo meio do caminho. Órfão de pai, as oportunidades foram subtraídas do Airton uma a uma, teve que largar a escola e trabalhar para ajudar no sustento da família. Porém a distância intelectual entre nós, nunca nos distanciou, Airton para mim, é um irmão.       

     Eram 18:00h, quando fomos à casa de Márcia atender seu chamado. Logo que chegamos, tocamos a campainha. O Aírton nervoso pergunta se eu ouvia a música tocando no interior da residência, antes de responder que sim, aparece Márcia, graciosa, desta vez gentil, e nos convida para entrar. Entramos, por alguns instantes eu a fitei buscando entender qual era o real motivo de me convidar para ir a sua casa! E ainda mais, não era conveniente uma mulher atender a porta de roupão. Depois de acomodarmos ficamos  olhando um para outro por alguns instantes. Nesse curto espaço de tempo tive certeza, aquela menina da escola que tirava a minha concentração nas aulas, havia se tornado uma mulher de comportamento duvidoso, embora mostrasse ser de boa linhagem, o caráter teria sido moldado com tempo. Ou quem sabe sempre foi assim, e minha imaturidade não me permitia enxerga. Marcia analisava-me, queria saber sobre o homem que o menino estranho tinha se tornado. Após essa conversa preliminar, descruza as pernas, mexe nos cabelos, sorriu e ofereceu um drink.

Enquanto tomávamos a primeira dose, as nossas conversas ganhavam sendas incomuns para quem não era íntimo. E embalados pela música em um volume suportável! Sim, digo suportável, não pelo conteúdo da canção, pois o gosto musical de Márcia foi outra coisa que me surpreendeu, a música a tocar era típica de  um puteiro decadente. Se eu disser que estava agradando aos meus ouvidos, estaria a mentir, embora houvesse elogiado quando entramos.

O fato de estarmos praticamente a sós, nos permitia retirar o selo da censura de tudo envolvendo Márcia e eu. Ciente da intimidade estabelecida ali, começamos a conversar sobre esses quinze anos que passamos sem nos vermos. Falamos dos nossos amores, perguntei onde andava o esposo. Márcia sorrindo disse:

___ estar viajando, só vem daqui a três dias. Não poderia ter me dado uma notícia melhor que essa. 

     Enfim, as horas passaram e entre lembranças e gargalhadas, bebíamos. O Aírton parecia ter entrado em coma alcoólico, esparramado no sofá, não parecia nem gente mais. Pensei, agora sem receio! Estamos sozinhos! E vibrei pelo momento. A escassez de assuntos era visível, não tinha mais nada para conversar. Então, peguei em sua mão, perguntei com tom de brincadeira, sem nenhuma intenção, se havia algum mortal capaz de suportar aquela situação. Como não se render aos seu encanto? Deu uma longa gargalhada, em seguida disse, francamente! Sou casada, esqueceu? Virou as costas foi até a estante, pega um baralho, sorriu novamente. Trouxe uma toalha que estava sobre a mesa, forrou o chão, sentou, chamou-me para jogar.

      Pois bem, começamos a jogar Strip Poker. O nosso jogo ia além, o perdedor tiraria uma peça de roupa indicada pelo ganhador. E acredite, Márcia perdia de propósito! Sem restar uma roupa se quer em seu corpo, levantou foi em direção ao aparelho de som. Fiquei a observar seu elegante andado, cada passada, o requebrado, o quanto era perfeita. Colocou a música, aproxima, e disse com as mãos no quadril:

___ Vamos dançar? Tire a roupa..., então dançamos coladinhos. E sob o vapor do álcool, embalados pela canção, perdemos a noção do tempo, mergulhamos em um universo fantástico de alegria, extravagância, uma metamorfose esplendorosa.

     O sol despontava por entre as cinzentas nuvens anunciando que já era dia. Rapidamente vestimos as roupas, acordamos o Aírton, e sem deixar rastro do que havia acontecido naquela casa, saímos. Depois de alguns minutos andando apressados para chegar ao ponto do ônibus, percebi que meu amigo calçava os sapatos que não eram os seus. Em tal engraçado caso, apontei para seus pés. Olhou assustado, tirou os sapatos e perguntou-me:

   __ E agora? O que fazer? Então refletir por alguns minutos, pensei em voltar para devolver os sapatos, mas fiquei com receio de encontrar o marido em casa. Olhei em direção ao ponto de ônibus, estava em pé, bem ali a solução, um homem a pedir esmola, aparentemente com   a estatura do Airton, provavelmente, calçaria o mesmo número, ou não. O fato foi que presenteamos aquele mendigo com um belo par de calçados.                                             

                                                                                                                         Farias, 1996

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