O RIO DE NÓS DOIS
Este encontro contigo faz-me reviver os
mais memoráveis momentos dos dias que passamos juntos. E assumo, não estou
emocionalmente preparado para encontros, ainda que seja casual. Enfim, já que
estamos aqui, sentemos! Espera, deixa eu puxar a cadeira, pronto sente. Lembra
a primeira vez que viemos neste quiosque? Que saudade! Olha, os meus dias foram
mais cinzas depois da sua partida, sem paixão, sem tua grata loucura, tudo me
remete ao saudosismo exacerbado, roçando a tristeza e solidão.
Tenho saudade de tudo. De sermos
despertados pelo sol entrando pela janela dourando teu corpo ebúrneo encostado
no meu. Acordar com o emaranhado dos
teus cabelos cobrindo meu rosto. De quando ficávamos na janela vendo o
majestoso sol apontar no horizonte. Não havia nada mais mágico.
Sinto falta
daqueles dias que nossa indomável imaginação irresponsavelmente atravessava as
cortinas da vergonha, rompia as amarras sociais, se embrenhava em sendas
inéditas dos nossos corpos gerando uma explosão de sentimentos que incitavam os
impetuosos excessos. Nada mortificava a egoísta e vaidosa paixão. Sem controle
sobre o violento desejo, éramos inundados por uma sensação gigantesca de
prazer. Que loucura!
A propósito, aproveito para agradecer a loucura por existir. Foi ela
quem nos levou aos mais esplendidos lugares, conhecemos um mundo sem tédio e a
mais agradável das vidas, e lá, se me permite falar? Insanamente dissemos e
fizemos todas as formas de amor, que certamente ninguém jamais ousará dizer ou
fazer. Encontrar uma metáfora para
mostrar o belo e trágico de nós dois, é muito difícil, se bem que olhando o
fenômeno que acontece com o rio da nossa cidade, consigo de maneira grosseira
encontrar uma semelhança. Imaginemos o rio que sofre com as estiagens e
desaparece no seu leito, no entanto aparece nas primeiras chuvas, iniciando
outro ciclo de vida. Contrário do rio, nós jamais teremos um recomeço, a severa
escassez dos pequenos gestos que alimenta e rega os amantes tornou o rio de nós
dois, um deserto. Germinar uma semente? Nunca mais. Pronto, essa é a metáfora,
o rio de nós dois.
Aquela forma de amar, acredite, mas
acredite como o cristão mais crente, ela não se repete no mesmo lugar nem com
as mesmas pessoas. Lembremos então, com gosto, do rio da nossa vida. Ele
existiu, teve águas turvas, águas cristalinas! Por muito tempo foi perene,
caudaloso, mas desapareceu, definitivamente. E lamento. Portanto, façamos o
seguinte, vamos lembrar das enchentes indomáveis do rio de nós dois. Por favor,
não chore! Tome, aceite o lenço [...].
Pois bem. Pouca coisa querida, restou do nosso último dia como rio, além
da saudade, companheira constante, ficou comigo a toalha que usaste na viagem.
Inesquecível viagem! Um sabonete em forma de coração, o lencinho de papel do
restaurante dobrado, posto no meu bolso enquanto nos despedíamos. Embora tenha
pedido para ser lido depois, faltou-me coragem para ler. Porém guardo tudo como
valiosos presentes em uma caixa de sapato que eu mesmo customizei com papel
róseo, e em cima a frase, pertence a Zoar, era assim que te chamava, para dizer
do teu brilho e a claridade ofuscando meu lado obscuro de humano.
Ah! A toalha continua cheirando viu? Não que eu vivo a cheirar, mas as
vezes dá uma curiosidade para ler o bilhete escrito no lencinho de papel do
restaurante, daí abro a caixa, teu inconfundível cheiro exala, toma conta de
todo ambiente, desisto rapidamente, fecho-a mais uma vez.
Se haverá um dia para te esquecer? Não
sei, também não sei como seria os meus dias sem essas lembranças. Digo sem
titubear, tu és constância nos meus dias e insisto lembrar dos teus encantos,
teus devaneios, a forma ardente e desesperada de amar. Isso conforta meu peito
agoniado por tua falta. De resto, vivo alegremente a contemplar a vida, a
gritar em cada canto que não há nada mais racional do que fazer da vida
uma linda loucura e tomá-la a longos tragos.
Veja, o taxi chegou. Podemos nos vermos
de novo qualquer dia?
__Não sei. É verdade tudo isso que
estás aí a falar? Responde, não me
permita entrar nesse carro, por favor!
Calma querida!
__ Não me chame de querida. Adeus...
Olhei para aquela mulher na certeza de
que nunca mais a veria; acendi o cigarro e fui andando na mesma direção que o
carro seguiu. Esperava ansioso o telefone tocar e ouvir sua voz informando onde
haveria descido e pedindo para ir ao seu encontro. Os minutos passavam, eu
apressava também a passada. Depois de
uma hora andando, desolado sentei em um banco de uma praça abandonada, cheias
de folhas e árvores secas, abióticas, por alguns momentos sentia-me uma delas.
Refleti sobre a nossa metáfora, o rio de nós dois. Já estava
anoitecendo, respirei fundo, sacudi as folhas que tinha caído sobre mim, segui.
As pessoas passavam por mim como se estivesse sabendo desse encontro nauseante,
trocavam de calçada para não ter aproximação, olhavam com piedade e medo! Para minha
surpresa encontrei andando por ali, Yelena, a chata ruiva da sorveteria
Marianas. Apressei a passada para chegar mais perto sem dá chance de mudar de
direção, a cumprimentei:
__ Olá! Boa noite moça!?
__Boa noite.
Ficamos lado a lado e seguimos no mesmo rumo, sem
falarmos uma palavra a mais. A minha mente estava muito ocupada naquele
instante, eu ainda esperava um telefonema. E Yelena, se com razão ou não,
olhava-me com desprezo.
Farias 2003
Nenhum comentário:
Postar um comentário